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Adolescente e bobo

Tem coisas que a gente lê e não imagina que vão repercutir na gente pelo resto da vida. Justamente por não ter antecipado isso, não faço ideia de em qual livro vi esse relato clínico que eu nunca esqueci. Um homem, divorciado e por volta dos seus cinquenta anos, procurava um psicólogo porque estava tendo sentimentos muito estranhos para ele. Depois de muito tempo sem uma conexão afetiva, ele começou a se envolver com uma mulher que conheceu em seu trabalho.  "Você sente que está obcecado por ela?", perguntava o psicólogo, "ou que os pensamentos a respeito dessa relação estão lhe botando em perigo?" "Não, é só uma paixão normal. Eu penso nela durante o dia, dou um sorriso bobo quando leio uma mensagem, imagino ela comigo antes de ir dormir..." "E isso é um problema pra você?" "Eu tenho cinquenta anos! Eu estou me sentindo como um adolescente. Eu já passei por relacionamentos que deveriam ter me ensinado a não cair nessa história mais uma vez....

Você está sozinho sim

 Sabe o que eu queria? Estar parado num semáforo com um cartaz escrito "Setembro amarelo - você não está sozinho", distribuindo Sonho de Valsa, acreditando sinceramente que alguém vai pular menos da ponte por conta disso. Mas eu saberia que um Sonho de Valsa não mantém ninguém vivo por muito tempo. Que a pessoa com o papelzinho nas mãos está sozinha sim, não necessariamente por falta de com quem conversar, mas por estar profundamente mergulhada na sensação de que não adianta, não merece ou não saberia usar desse recurso.  Mas a pessoa está sozinha sim, e me parece covarde tentar consolar alguém com uma mentira.  Você sabe o quanto está, de fato, sozinho quando se vê sem amigos por perto numa noite particularmente difícil em que as distrações não são potentes o suficiente para calar um pensamento cruel.  Você sabe o quanto, mesmo com uma noite de sono e a promessa de um novo dia, acordar pode parecer uma condenação a carregar o fardo de viver por mais vinte e quatro h...

Balada da Arrasada

 Precisamos fazer uma distinção muito importante. Doido é doido, louco é louco, e um é muito diferente do outro. O louco é o maluco, esses estão na mesma categoria. Eles tem transtorno, eles tem diagnóstico e eles tem tratamento. Os loucos merecem respeito e esse texto não é sobre eles. Agora, o doido é outra história. O doido é aquela pessoa que, em posse de plenas faculdades mentais, toma as decisões mais estapafúrdias possíveis: larga relacionamentos estáveis em busca de emoção, puxa briga com quem discorda dela, torce pro Paraná Clube... Inclusive acho que uma pessoa pode pertencer às duas equipes. Eu, por exemplo, sou um pouco louco (porque tenho laudo), mas também sou doido (acredito na melhora do humanidade pela educação). -- O único tipo de texto que eu não enrolo pra escrever é obituário. É impressionante como a morte me motiva. Dessa vez quem vestiu o paletó de MDF foi a Angela Ro Ro. Essa sim, um belo exemplar de doida.  Eu fico triste por ela, sim, mas fico triste ...

Chivas Regal

 Tô até com vergonha de começar o rascunho de mais um texto. Quando eu abri o aplicativo de notas em que eu escrevo, vi pelo menos uns quinze abortos recentes de ideias que eu tive, cheguei a rascunhar e não terminei.  Talvez isso não seja um problema. Não existe muita vantagem em fazer as coisas até o fim. É quando as coisas terminam que os problemas começam.  Se eu pensei, elaborei, cheguei no ponto que eu queria e ninguém ficar sabendo, isso não tá bom? É a satisfação do meu sonho gordinho de mastigar sem engolir, sentir o sabor e nunca engordar.  Eu nunca tive vergonha de *não* publicar um texto.  Mas de me expor? Quantos pensamentos de "não devia ter feito isso", "fulano deve ter achado isso ridículo", "que piada mais batida...". Dando corda pra isso que fiquei com a gaveta cheia de rascunhos.  Me poupei de uns dramas mas... Uma masturbação sem gozo até te poupa de limpar a sujeira depois, mas vale de quê? -- Eu queria matar o Luís Fernando Veríssimo....

Fimose facial

  Depois de quase dois meses, agora que começo a ver os resultados de uma cirurgia plástica que fiz na cara. Não é a minha primeira, fiz uma baciada de procedimentos aos 30 antes desse agora aos 35.  Minha ideia é reformar alguma coisa de cinco em cinco anos até me transformar completamente num pneu remold. Até agora, nem foi tanto por vaidade. Eu nasci com uma quantidade excessiva de pele no rosto. Não precisava tanto. Veio com sobra pra fazer uma cortina e um tapete. Amigos me perguntavam se eu estava com sono. Professores me perguntavam se eu estava dormindo. Pessoas na rua perguntavam quem foi que perdeu um sharpei.  De tanto forçar a testa pra levantar as pálpebras e mostrar os olhos, fiz uma ruga de fora a fora que meus amigos carinhosamente apelidaram de "bocetão".  Foi um luto geral quando, num primeiro procedimento, fiz um preenchimento nele como uma prefeitura faz uma operação tapa-buraco. Depois, fiz uma cirurgia chamada castanhares, em que eles tiram um b...

Poupança sombria

 Uma mudança que eu não esperava na vida era a evolução espiritual dos meus amigos. Por mais que eu selecione quem eu deixo entrar na minha convivência, eu ainda me surpreendo com amigos fazendo comentários positivos. Otimistas. Esperançosos! O horror em estado puro.     Exemplo: alguém termina um namoro. Eu, no meu lugar de amigo, acolhedor e compreensivo, ofereço um "o que esse filho da puta aprontou dessa vez? vamos esfoliar o carro dele com uma pedra-pomes!". Um gesto de carinho. Aí, como uma facada, a pessoa me responde "apenas incompatibilidades... estamos bem e eu realmente desejo que ele seja feliz!". Se em algum momento eu acreditei que a gente é parecido com as pessoas que a gente convive, a crença caiu por terra agora. Eu não sou assim. -- O duro é que isso contamina.  Eu também tenho mudado - devagarinho, de leve - e nem tenho julgado meus amigos tanto assim.  É uma mudança parecida com a que acontece quando a resposta para uma amiga que diz que...

Zombeteiro

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Nada é mais cafona em pleno ano de 2025 do que querer um sentido pra vida. Eu não devia falar isso em voz alta, porque meu emprego literalmente é fazer as pessoas acreditarem que algum sentido deve existir e aí passar duzentas sessões correndo atrás disso.  É uma profissão que, para os ingênuos, é muito bonita e faz muito sentido.  Bobagem. Eu gosto de ser terapeuta e acredito de verdade que algum bem eu devo fazer pros meus pacientes, mas esperar sentido disso? Cafona.  O sentido de qualquer trabalho é sair do trabalho e não fazer nada. -- A vida mais sem sentido talvez seja a com mais sentido: ficar aqui por um tempo, trabalhar um tanto, comer algumas coisas gostosas e ocasionalmente passar a mão num gato. Depois, pendurar as chuteiras, sem culpa nenhuma, e dormir pra sempre.  É o verdadeiro paraíso.  Nunca pensei "que ódio, vou tirar uma sonequinha depois do almoço" ou acordei pensando "que experiência horrível essa de me desacoplar da vida por uns minutinhos...